São Francisco Xavier tem em média 4.000 habitantes, nem melhores nem piores do que são em qualquer outra cidade nos flancos da Mantiqueira. E esta estranha história de livros, cadeia e correio, aconteceu de verdade.
As coisas simplesmente ocorreram assim, talvez para que houvesse esta história. Quem sabe? Não há culpados, mas há um herói.
Era uma vez um bibliotecário. Ele queria trabalhar em uma biblioteca em S. Francisco. Por isso ela tinha de existir, como existe.
Quando você passa na rua principal, só há umas cinco ruas, você a vê: Biblioteca Solidária de São Francisco Xavier. Tem mais ou menos três metros de largura bem junto à calçada. Uma só folha de porta, feita para estar sempre aberta. Ou quase.
Se der sorte, você reconhece o bibliotecário saindo ou entrando. Se você não puder entrar, espie. O espaço é estreito, quase um corredor. E os livros. Prateleiras de livros até o teto.
Mas, esses livros, de São Francisco Xavier, têm páginas e páginas de história para se contar. Contadas de frente pra trás, ou de trás pra frente. Esta é apenas uma porta, uma entrada para a historia da biblioteca. Entrada e saída, para ir e vir, levar livro e trazer de volta. História também,leva o leitor pra trás, depois trás pra frente, repete o meio, depois volta.
O prédio para a biblioteca já existia. Era o prédio da antiga cadeia pública, na praça, como era costume nas cidades pequenas. Em 1993, a biblioteca foi montada lá, onde hoje é o correio. Uma iniciativa saudável, da sub-prefeitura.
Até aqui, a história parece muito boa. É muito promissor, ao invés de gente presa, gente livre para ler o que bem queira.
Assim, os livros foram parar na antiga cadeia. Então foi feito um projeto para o melhor aproveitamento e adequação do espaço. As grades tinham de ser retiradas, coisa e tal. Mas, o projeto não foi aprovado.
E da discussão, resultou o fechamento da biblioteca. Ou foi da cadeia?
Trancafiados, literalmente atrás das grades, os grandes inocentes, os livros, tratados como culpados. Presos em cadeia pública. Como se alguém tivesse ordenado:
“ -Tejem presos!”
E estiveram. Por muito tempo, muita umidade, muita traça, bolor.
Foi quando (ah, boa saída para este enredo) voltou pra cidade um moço nascido lá. Voltou muito bem formado: bibliotecário. Toda cidade já sabia.
Um dia, bateu à sua porta, a mesma da biblioteca de agora, um grupo de crianças:
“ – Precisamos fazer uma pesquisa sobre o MERCOSUL, pra aula de amanhã!”
Talvez na cabecinha delas, bibliotecário fosse alguém que traz na cabeça o conhecimento de todos os livros. Mas, o que o bibliotecário tinha na cabeça e no coração, era a capacidade de indignar-se. E a liberdade de ir e vir. Os livros mofavam atrás das grades, desde quando? Ele não.
Foi à escola, foi à prefeitura.
“- A chave da cadeia não está aqui.”
“ –Que chave? A da cadeia? Não sei, nunca vi.”
“-Ninguém está com a chave da cadeia.”
O bibliotecário usou um outro tipo de chave. Escreveu um projeto pela libertação dos livros. Enviou à prefeitura. Não conseguiu. Tentou nova chave: um documento “abaixo-assinado” com 1286 assinaturas para que as grades fossem abertas. Também não conseguiu. Mas a chave para abrir a porta da cadeia foi encontrada.
As histórias, no percurso do tempo, pregam peças. Nesse vai que não vai, entrou em curso umaoutra decisão. A cadeia antiga não mais se destinava à biblioteca. Seria o Correio que existe até hoje na praça.
Os livros, devidamente amarrados, empacotados, foram conduzidos, como cordatos prisioneiros,num carro da prefeitura. A nova escola ofereceu uma sala para abrigá-los.
“-Mas assim embolorados?”
Houve sim, uma honrosa tentativa de limpeza. O bibliotecário lembra de ter visto livros num balde com água!
Para ele foi demais. Aprendera a cuidar de coisas preciosas, livros. Disse para a família:
“- Não tenho mais o que fazer aqui!”
“-Não seja por isso. Use a garagem de casa!”
Ele usou. Fez a biblioteca. Não foi tão simples. Era a casa da família, havia brigas por causa da biblioteca na garagem, ou não. Discussão.. Era difícil fazer tudo sozinho.
Ele conta, que passou pela cidade um terapeuta (ou mago?) de S. Paulo que várias vezes o encorajou.
“-Não desista. Isto é um teste. Dedique-se a seu trabalho.”
“-Todo que ele disse, aconteceu!” O bibliotecário ainda agora se admira.
Libertos os livros, soltos nas mãos de quem queira ler. E muitos outros, muitos outros, agora catalogados como devem estar. Aberta a porta, entraram amigos dos livros, da biblioteca, do bibliotecário.
Desde outubro de 2002 existe a Biblioteca Solidária de São Francisco Xavier.